Uma mãe que amarra o filho e o mantém em cárcere sob sessões de tortura. Um pai que larga a filha na porta de um hospital após matá-la por espancamento. Um bebê de nove meses que é morto por sofrer agressões de um grupo de pessoas. Todos esses casos aconteceram neste ano no Brasil e levantaram questionamentos na sociedade: até onde vai a maldade humana e quando essa maldade pode ser considerada patológica?
Psiquiatra forense e presidente da Associação Paraibana de Psiquiatria, José Brasileiro diz que a maldade é intrínseca ao ser humano. Todo mundo, em algum momento da vida, pode ser mau. Ou seja, os indivíduos são pessoas más em potencial. Entretanto, a forma como o sentimento se manifesta em ações é que fala sobre seu caráter, separando aqueles que têm dos que não têm um distúrbio mental perverso.
“O psicopata é um indivíduo que tem como características a ausência de empatia, de remorso e insensibilidade afetiva. Empatia é quando me solidarizo pelo outro, vejo seu sofrimento e entendo que você está sofrendo. O psicopata não tem essa percepção. Se ele vir alguém morrendo ao seu lado, para ele tanto faz tanto fez. Ele não sente pena, compaixão. Ele também tem insensibilidade afetiva, ou seja, ele não se envolve afetivamente com ninguém. Quando se envolve é por algum interesse. E devido a todas essas condições, ele não tem remorso, arrependimento”, disse.
Somado a este perfil, o psicopata carrega em si várias outras problemáticas. Estas que podem fazer dele um indivíduo além de amoral, criminoso. “Dentro dessas características, temos outras como a mentira patológica, a capacidade de manipulação e sedução, a tendência ao tédio. O psicopata tem que estar sempre se colocando no risco, buscando uma condição na qual ele possa desafiar. O que caracteriza o comportamento criminoso é essa necessidade de romper com as regras. Ele traz consigo a necessidade de romper com as regras e imperativamente faz isso, sem remorsos”, disse José Brasileiro.
Já a maldade, explica o médico, não necessariamente estará no indivíduo em todas as etapas da sua vida. E não necessariamente ela implicará numa conduta criminosa. “Muita gente pergunta: o psicopata tem jeito? Não, o psicopata não tem cura, nem tem jeito. Ele estará sempre reincidindo. Já a maldade é uma condição que esta inerente ao ser humano. Todo ser humano, em algum momento pode ser mau. Não tem como o ser humano ser isento de maldade porque a condição de maldade está atrelada a questões sociais, culturais, psicológicas. Todo ser humano em algum momento da vida foi mal. Isso não caracteriza a psicopatia”.
Pais que machucam
Em julho deste ano, uma criança de sete anos deu entrada no Hospital de Emergência e Trauma de Campina Grande, vindo da cidade de Boqueirão, onde era torturado pela mãe e pelo padrasto. Segundo informações da Polícia Civil, o menino era mantido acorrentado e passava por sessões de tortura, sendo espancado com fios elétricos, cordas e velas, além de passar fome.
No boletim médico, a criança foi diagnosticada com anemia, desnutrição, sinais de hematomas e queimaduras no corpo, precisando passar por uma cirurgia de reconstrução do couro cabeludo. Maria Aparecida Silva Sousa, de 26 anos, e o esposo dela, o agente de saúde Edilson Cosme de Albuquerque, de 25 anos, foram presos.
Este é só mais um dos casos ocorridos este ano no país onde pais e parentes próximos mataram ou violentaram crianças com requintes de sucessivas crueldades, deixando na sociedade as marcas da capacidade bárbara do ser humano. Na avaliação do psiquiatra José Brasileiro, a figura do pai e da mãe criada na sociedade se desfaz quando entre eles há o componente da psicopatia.
“A partir do momento que não tenho empatia, essa imagem do pai e da mãe que cuidam do filho se desfaz. O filho, muitas vezes, acaba sendo o produto do relacionamento. Ele foi reproduzido, mas não ha empatia e afetividade para com ele. Independente do caso, quando se é psicopata, ele faz uso do filho para ter algum ganho ou por algum motivo, e sem arrependimento. Essa ideia que temos do pai e mãe ideal, que ama e cuida, não funciona para o psicopata”, disse.
Muitas vezes, explicou o especialista, as experiências familiares também fabricam o indivíduo psicopata. “Geralmente não ha expressão de afeto, ligação, entre o psicopata e seu filho. Temos que entender que a condição de psicopatia tem forte fator genético, ambiental e psicológico. Muitas pessoas que são psicopatas podem ter sofrido abuso quando criança e ao longo da vida. Não justifica o ato dela, mas quando vamos no histórico de vida acontece muitos casos que os abusos aconteceram. Um pai psicopata e uma mãe psicopata podem muito bem gerar filhos que serão psicopatas”.
Não é que estes crimes estejam aumentando, destaca o psiquiatra José Brasileiro, mas hoje em dia se dá mais visibilidade e importância aos mesmos. “A psicopatia foi um conceito introduzido na década de 60 e foi melhor elaborado entre 70 e 80. Esse conceito conseguiu determinar uma escala para medir a intensidade e definir a partir de quantos pontos a pessoas seria considerada psicopata. Hoje temos uma visibilidade maior, mas esse tipo de coisa sempre ocorreu. Hoje a gente estuda e vê mais, porque o conceito de psicopatia é muito novo. Antes da década de 80 não se tinham muitas definições, a gente sabia do comportamento cruel, existiam definições como a sociopatia, a insanidade moral, mas bem estruturado como hoje não”.
Tríade do mal
Especialista em psicologia da personalidade, o pesquisador americano Delroy Paulhus realizou uma série de testes para entender a pensamento maldoso. Seu estudo partiu de uma pergunta comum: por que algumas pessoas têm prazer em serem cruéis? Não aquelas classificadas como psicopatas ou condenadas por crimes violentos, mas especificamente os bullies das escolas, os trolls da internet e até membros da sociedade tidos como respeitáveis, como políticos e policiais.
Em uma reportagem publicada pela BBC, Paulhus diz que é muito fácil tirar conclusões rápidas e simplistas sobre esse tipo de indivíduo. “Temos uma tendência a querer simplificar o mundo dividindo as pessoas entre as boas e as más”, afirma o psicólogo, professor da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá. Mas, segundo ele, existe uma “taxonomia” para os diferentes tipos de maldades encontradas no dia a dia. O interesse de Paulhus começou com os narcisistas – indivíduos incrivelmente egoístas e vaidosos que atacam os outros para defender sua própria autoestima.
Há pouco mais de uma década, um aluno seu, Kevin Williams, sugeriu que explorassem a possibilidade de essas tendências ao egocentrismo estarem ligadas a duas outras características desagradáveis: o maquiavelismo (uma manipulação fria) e a psicopatia (uma insensibilidade aguda e indiferença ao sentimento dos outros).
Juntos, os dois cientistas descobriram que os três traços eram bastante independentes, apesar de às vezes coincidirem, formando uma “Tríade do Mal”, aponta a reportagem da BBC. A honestidade dos voluntários nos testes de Paulhus o surpreendeu. Ele percebeu que os participantes que concordavam com frases como “Gosto de provocar pessoas mais vulneráveis” ou “Não é uma boa ideia me contarem segredos” geralmente se abriam sem pudor e tinham passado por alguma experiência de bullying, na adolescência ou na vida adulta.
Essas pessoas também apresentaram uma tendência maior a serem infiéis a seus parceiros e a trapacear em exames. Paulhus notou ainda que essas características não apareciam em um primeiro contato frente a frente com o voluntário. “Essas pessoas estão lidando com a sociedade cotidianamente, por isso têm autocontrole suficiente para não se meterem em confusão. Mas uma coisa ou outra em seu comportamento acaba chamando a atenção”, afirma o psicólogo.
Sadismo cotidiano
Recentemente, Paulhus começou a examinar mais profundamente as partes mais sombrias da psique humana. “Preparamos questionários com perguntas mais extremas e descobrimos que alguns voluntários facilmente admitiam já ter causado dor em outras pessoas apenas por prazer”, conta. Para ele, essa tendência não é apenas um mero reflexo do narcisismo, da psicopatia ou do maquiavelismo, mas sim uma subespécie de maldade, à qual deu o nome de “sadismo cotidiano”.
Em uma das experiências, os entrevistados tinham a possibilidade de jogar insetos em um triturador. Sem que os participantes soubessem, a máquina foi adaptada para dar aos insetos uma saída, mas ainda assim produzia sons arrepiantes que imitavam o ruído dos animais sendo esmagados. Algumas pessoas eram tão sensíveis que se recusavam a participar da experiência, enquanto outras demonstraram ter prazer na tarefa. “Esses indivíduos foram os que marcaram mais pontos no meu questionário sobre sadismo cotidiano”, afirma Paulhus à BBC.
Paulhus acredita que esse comportamento é semelhante ao dos chamados ‘trolls’ da internet. “Eles são a versão online do sadista cotidiano porque passam um bom tempo procurando pessoas para atacar”. Uma pesquisa anônima com indivíduos que deixam comentários com teor de ‘trolagem’ na rede concluiu que eles são os que marcam mais pontos nos testes de personalidade cruel e têm o prazer como sua principal motivação. Os estudos de Paulhus chamaram a atenção da polícia e de agências militares, que querem trabalhar com ele para investigar por que algumas pessoas abusam de suas posições.
Fonte: Beto Pessoa – Jornal CORREIO